Xamanismo digital: A lição xamânica oculta por trás da guerra em Avatar

Thiago Carvalho

Jornalista & Fundador - Eu Mais Sustentável

Sempre que saio do cinema depois de assistir a um filme da franquia Avatar, sinto algo diferente. Não é apenas o deslumbramento com a tecnologia 3D ou os efeitos visuais que são marca registrada do diretor James Cameron. É uma ressonância interna, algo antigo. Como estudante de Psicologia Transpessoal e admirador de práticas xamânicas, percebo que James Cameron não está apenas contando uma história de ficção científica; ele está reintroduzindo, para a cultura de massa, uma estrutura mitológica de cura que a nossa sociedade “civilizada” esqueceu há muito tempo.

Ao analisar a saga – desde as florestas do primeiro filme, passando pelos oceanos de “O Caminho da Água”, até a promessa sombria de Fogo e Cinzas – fica claro para mim: Avatar é, em essência, uma jornada xamânica moderna.

Hoje, quero compartilhar com vocês como esses filmes traduzem conceitos profundos do Xamanismo e da ecologia, e o que podemos aprender com a nova “Tribo do Fogo” sobre os nossos próprios traumas e sombras.

CUIDADO! CONTÉM SPOILERS.

O “Tsaheylu” e a Teia da Vida: O Xamanismo biológico

No primeiro filme, somos apresentados ao conceito de Eywa (a Grande Mãe) e ao Tsaheylu (o vínculo). Para muitos, isso é apenas um roteiro criativo. Para quem estuda o xamanismo, isso é a literalização da nossa realidade espiritual.

No curso de Transpersonal, estudamos como a separação entre “eu” e o “outro” é uma ilusão do ego. Em Pandora, essa ilusão não existe. A conexão não é fé; é biologia. Quando um Na’vi conecta sua trança a um Ikran ou à Árvore das Almas, ele está praticando o que chamamos de Animismo Relacional.

  • A lição prática: Nós não temos “filas neurais” nas nossas cabeças, mas temos a mesma capacidade de conexão. A sustentabilidade real não nasce de “salvar o planeta” como algo externo, mas de sentir que nós somos o planeta. O xamanismo nos ensina que ferir a natureza é uma autoagressão. Avatar nos mostra que a empatia é a tecnologia mais avançada que existe.

O caminho da água e a medicina do sopro

No segundo filme, a narrativa mergulha na fluidez. Vemos a personagem Tsahìk Ronal realizar uma cura em Kiri usando técnicas que lembram muito o trabalho com o Chi (energia vital) e o sopro xamânico.

Diferente da medicina ocidental que vemos nos laboratórios humanos do filme, que trata o corpo como máquina, a medicina Na’vi trata o desequilíbrio energético. Ronal manipula a energia estagnada no corpo de Kiri, algo muito semelhante a rituais de extração de doença que vemos em tradições indígenas amazônicas e siberianas.

  • A lição Prática: “A água conecta todas as coisas, a vida à morte”. Essa filosofia taoista presente no filme nos lembra da impermanência. Para termos qualidade de vida, precisamos ser como a água: adaptáveis. A rigidez (física e mental) é o princípio da doença; o fluxo é a saúde.

Avatar 3: Fogo, Cinzas e a Perda da Alma

É aqui que a coisa se aprofunda e onde tudo fica ainda mais fascinante – e um pouco assustador. O filme, Avatar 3: Fogo e Cinzas, introduz o “Povo das Cinzas” (o clã Mangkwan). E eles trazem a lição xamânica mais dura de todas.

Ao contrário dos Na’vi que vivem em harmonia, este clã do vulcão rejeitou Eywa. Por quê? Eles sofreram um cataclismo vulcânico. A sua “casa” foi destruída e eles sentiram-se abandonados pela Grande Mãe.

Na Psicologia Transpessoal e no Xamanismo, chamamos isso de Perda da Alma.

O trauma e o ritual do fogo

Quando passamos por um trauma severo, uma parte da nossa essência vital se fragmenta para sobreviver à dor. O Povo das Cinzas representa essa dissociação coletiva. Eles substituíram a conexão suave da floresta pela dureza da sobrevivência, da raiva e do fogo.

O simbolismo do fogo (Agni): Na tradição védica, o fogo (Agni) tem duas faces: a que ilumina e aquece (Jataveda) e a que devora cadáveres e destrói (Kravyada). O Povo das Cinzas abraçou o fogo devorador. Eles usam o fogo e a tecnologia não para criar, mas para dominar, porque o trauma não curado busca controle.

Rituais de sangue e êxtase: A líder deles, Varang, utiliza uma arma baseada no Buugeng (uma ferramenta de malabarismo em forma de S que cria ilusões hipnóticas). Isso remete ao transe. Seus rituais envolvem dança no fogo e cortes no corpo (inspirados nos povos Baining da Papua-Nova Guiné e rituais andinos), buscando transformar a dor física em poder espiritual.

Eles não são apenas “vilões”. Eles são o espelho da humanidade ferida. Eles somos nós quando decidimos “queimar” o mundo porque fomos feridos por ele.

O que podemos aprender?

Escrevo este artigo não apenas para analisar um filme, mas para propor uma reflexão sobre a nossa própria busca por qualidade de vida.

O Povo das Cinzas nos ensina o perigo de não processarmos o nosso luto. Quando nos desconectamos da nossa essência (nossa Eywa interna) por causa da dor, tornamo-nos rígidos, cobertos de cinzas, defensivos.

A verdadeira sustentabilidade começa na recuperação da alma. Precisamos:

  1. Reconectar: Praticar o nosso Tsaheylu diário (pisar na terra, ouvir o silêncio, olhar nos olhos).
  2. Fluir: Aceitar as emoções como o “Caminho da Água”, sem represá-las.
  3. Transmutar o Fogo: Usar a energia do fogo (raiva, paixão, ação) para aquecer e transformar, não para destruir.

Avatar nos convida a deixar de ser o “Povo das Cinzas” – ressentidos e destrutivos com o nosso ambiente – e lembrar que, no fundo, somos guardiões da vida.

Se você ainda não assistiu Avatar 3 ou os demais filmes da franquia, aproveite esse recesso do final de ano para se aventurar e, claro, se emocionar com esse clássico contemporâneo.

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